MULHER DE VERDADE – EPISÓDIO 1:
“PARA SEMPRE, LIBERTÉ”
ESCRITO POR:
WILLIAM
PERSONAGENS
DESSE EPISÓDIO:
LISETE/LIBERTÉ LARISSA MACIEL
VILMA NICETE BRUNO
REGINA HELOÍSA PÉRISSÉ
ERNESTO RODRIGO SANTORO
EUGÊNIO EDSON CELULARI
MIRTES NÍVEA MARIA
FADE IN:
FADE
OUT:
AGOSTO,
1950.
LIBERTÉ
(NARRAÇÃO) – Nunca acreditei em sorte, nem em azar. Mas por incrível que
pareça, foi a partir de agosto, o mês do azar, que tudo que eu tinha, ou aquilo
que eu pensava que tinha, ruiu.
FADE
OUT:
FADE IN:
CENA
1 / TREM / CABINE 07 / MADRUGADA / INT.
O
TREM SE MOVE COM VELOCIDADE PELOS TRILHOS, QUEBRANDO O SILÊNCIO E RASGANDO O
FRIO VENTO DE AGOSTO. LIBERTÉ PRESTAVA ATENÇÃO ASSÍDUA AO QUE VIA PELA JANELA.
LIBERTÉ (PENSAMENTO) – São como telas que se dissolvem e se recriam outra
vez...paisagens mortas, irreais...só vivem no ponto de vista de quem vê a vida.
(ELA MUDA SEUS OLHOS DE FOCO E
OBSERVA A XÍCARA DE PORCELANA RESPLANDECENDO EM CIMA DO PÍRES SOB O ACENTO AO
SEU LADO NO VAGÃO)
LIBERTÉ (PENSAMENTO) – Uma xícara de porcelana branca com lírios e
lavandas pintados. Belo esforço. Quase me sinto em paz!
(LIBERTÉ SE LEVANTA E APAGA A LUZ
DO VAGÃO)
DISSOLVE
100%
CENA
2 / SÃO PAULO / ESTAÇÃO DE TRÊM / PLATAFORMA DE DESEMBARQUE / MANHÃ / EXT.
LIBERTÉ
DESEMBARCA DO TREM. UM HOMEM SE APROXIMA.
EUGÊNIO – Liberté! É uma honra...
LIBERTÉ (INTERROMPE) – Sem
cerimônias, já me basta toda a bajulação que tenho nos palcos, quero por alguns
instantes ter um pouco de paz...longe deles!
EUGÊNIO – Eles quem, senhora?
LIBERTÉ – Aquela matilha...
EUGÊNIO – Fala dos seus... (pausa)
fãs?
LIBERTÉ – Hã...falo! Parece que são
obcecados por mim! Parece até que não possuem vida própria e ficam, por vezes,
feito dementes atrás de mim!
EUGÊNIO – Mas eles amam a senhora!
LIBERTÉ – Amariam qualquer uma que
dissesse, cantasse ou interpretasse aquilo que eles querem ver e ouvir! Agora
vamos, não tenho todo o tempo do mundo!
FADE
OUT:
FADE IN:
CENA
3 / CARRO / MANHÃ / INT.
LIBERTÉ,
OLHANDO PELA JANELA SE RECORDA DE QUANDO TEVE SEU PRIMEIRO CONTATO COM O
TEATRO.
DISSOLVE
50%
CENA
4 / FLASHBACK / SÃO PAULO - 1920 / ENTRADA DO TEATRO AQUÁRIUS / NOITE / EXT.
ERA
UMA NOITE DE AGOSTO DE 1920, LIBERTÉ AINDA ATENDIA PELO SEU “VERDADEIRO” NOME:
LISETE. NA ÉPOCA, ELA TINHA 20 ANOS, E RECÉM HAVIA CHEGADO EM SÃO PAULO, APÓS
FUGIR DE CASA. UMA MULHER, VEIO ATÉ ELA.
REGINA – Boa noite, menina! Como
você se chama?
LISETE – Boa noite! Me chamo de
Lisete. E você, como se chama?
REGINA – Me chamo Regina. Eu notei
que você veio várias vezes para essa peça...
LISETE – Várias não! Em vim em
todas as representações da peça!
REGINA – Em todas?
LISETE – Sim, todas!
REGINA – Não acha que está gastando
muito dinheiro vendo sempre a mesma peça? Esta já é a décima sexta
representação!
LISETE – Não! (SORRI) Eu fico de pé!
Nem gasto tanto assim!
REGINA – Ah! Se não parecer
intromissão, queria lhe perguntar, por que veio tantas vezes nessa peça? Creio
que hajam outras em cartaz!
LISETE – E de fato tem muitas
outras, mas... (PAUSA) não são como essa!
REGINA – Bom...sou suspeita pra
falar...meu marido é o autor da peça.
LISETE – O grande Claudionor
Vasconcellos é seu marido?!
(MIRTES, ASSISTENTE DE REGINA, SE
APROXIMA DAS DUAS)
REGINA – É. Ele mesmo! Mas não
entendi seu apego por essa peça ainda...não tem amigos, família?
LISETE – (PAUSA) Eu deixei minha
família para trás quando saí do interior...ou melhor, quando fui expulsa de
casa pelo meu pai por ter tentado entrar para o teatro...há um ano atrás eu
quase me casei...mas fui deixada no altar...
MIRTES – Puxa...que história mais
triste! Daria uma ótima peça!
REGINA – Não seja leviana, Mirtes.
Até o mais grotesco escritor deve notar quando uma história é íntima e realista
demais para se desenvolver no circo de pulgas que é o teatro! Peça desculpas a
moça!
MIRTES – Me desculpe se te ofendi,
esse é o meu jeito...
LISETE – Não! Imagina! Não me
ofendi! Aliás, não fomos apresentadas!
MIRTES – Meu nome é Mirtes, e o seu
é Lisete, pelo que escutei, certo?
LISETE – Certo, é isso mesmo!
MIRTES – Bom, é um prazer lhe
conhecer, Lisete! Agora preciso ir, realmente. Espero te ver mais vezes!
LISETE – Foi um enorme prazer para
mim também, assim espero (SORRI)
(MIRTES SORRI E SE AFASTA)
REGINA – Venha, Lisete! Te
apresentarei ao meu marido!
LISETE – Tem certeza? Não acha que
vou incomodar?
REGINA – De forma alguma! Vamos lá,
menina!
FIM DO FLASHBACK
DISSOLVE
100%
CENA
5 / CARRO / MANHÃ / INT.
O
CARRO PARA NO JARDIM DE UMA CASA.
LIBERTÉ – Finalmente chegamos!
(O MOTORISTA, EUGÊNIO, ABRE PORTA
DO CARRO PARA LIBERTÉ SAIR)
EUGÊNIO – Finalmente? Acha que
demorou tanto assim?
LIBERTÉ – Para uma atriz de 50 anos
todo tempo é uma eternidade!
EUGÊNIO – Pensei que já tivesse
alguma folga da carreira...
LIBERTÉ – Folga? Que tolice...na
indústria do teatro todos nós atores e atrizes somos como abelhas em colmeias!
Com ferrões e produzindo mel dia e noite sem parar!
EUGÊNIO – Imagino.
(OS DOIS CAMINHAM ATÉ ENTRARAM NA
CASA. UMA CASA GRANDE, COM UM TOM BEGE CLARO, E ORNAMENTADA POR ALGUNS
ARABESCOS BRANCOS.)
CENA
6 / CASA DE LIBERTÉ / ENTRADA / MANHÃ / INT.
LOGO QUE ENTRARAM, VILMA,
GOVERNANTA DA CASA, VEIO ANSIOSA RECEBER LIBERTÉ.)
VILMA – Liberté! Quanto tempo! (ABRAÇA
LIBERTÉ)
LIBERTÉ – É. Nada mais poético que
terminar onde tudo começou.
DISSOLVE
100%
CENA
7 / CASA DE LIBERTÉ / SALA DE ESTAR / MANHÃ / INT.
VILMA – Oh! Que bobagem! Vamos, eu
fiz aquele pudim de damasco que você gosta! E não me venha com aquele papo de
dieta! (RISOS)
LIBERTÉ (TOM: IRÔNICA) – É mesmo? Que bom. Muito bom! Se me derem licença,
eu gostaria de descansar um pouco. Essa viagem foi muito exaustiva para mim. (SE
AFASTA)
EUGÊNIO (V.O.) – Espere, senhora!
(LIBERTÉ SE
VIRA)
LIBERTÉ – O
que você quer?
EUGÊNIO –
É...onde quer que eu deixe as malas?
LIBERTÉ –
Isso é seu trabalho, deixe no lugar que achar mais conveniente. Só me deixe
respirar um pouco sozinha! Sem ninguém, sem memórias, sem passado...
(SE AFASTA
E SOBE AS ESCADAS EM DIREÇÃO AO SEU QUARTO)
EUGÊNIO (SE
VIRANDO DE FRENTE PARA VILMA) – Você acha que ela está bem dessa vez?
VILMA – Se
eu aprendi algo convivendo com uma estrela, é que são totalmente imprevisíveis.
Parecem estar bem, quando na verdade estão mal, outrora, parecem estarem mal,
quando no fundo estão bem. Ah...uma estrela longe de um palco, longe dos
aplausos, longe das luzes, dos flashes...está totalmente vazia! (APANHA
O TAPETE DO CHÃO, O ENROLA E LEVA-O, SE AFASTANDO EM DIREÇÃO À LAVANDERIA)
DISSOLVE
100%
CENA
8 / CASA DE LIBERTÉ / SALA DE ESTAR / MANHÃ / INT.
LIBERTÉ
ESTÁ DEITADA NA CAMA E FUMANDO CIGARRO. ELA O TIRA DA BOCA E ASSOPRA A FUMAÇA.
ELA OBSERVA A FUMAÇA DO CIGARRO QUE ASSOPRA.
DISSOLVE
100%
CENA
9 / FLASHBACK / SÃO PAULO - 1920 / TEATRO
AQUÁRIUS
/ CAMARIM DE REGINA / NOITE / INT.
REGINA
E LISETE (LIBERTÉ) ENTRAM NO CAMARIM.
LISETE – Eu nem consigo explicar a
honra que é estar no camarim e tão próxima da grande Regina Delaor!
REGINA – É. Imagino. Embora os
palcos deem uma dimensão muito maior do que realmente o artista é, eu agradeço.
Escute, você acompanha toda a minha carreira?
LISETE – Totalmente, acompanho
toda!
REGINA – E o que achou dos meus
outros papeis?
LISETE – Achei eles fantásticos!
REGINA – É mesmo? Não achou
realmente nenhum ruim?
LISETE – Não. A sua grandeza
resplandece em saber escolher os melhores papéis.
REGINA – Essa daria uma ótima frase
para um filme! (RISOS)
LISITE – (RISOS) Um filme como os
quais a senhora está acostumada a fazer?
REGINA – É. Uma tragédia grega!
Édipo talvez. (RISOS) Mas não me chame de senhora! Me envelhece...o tempo é
muito cruel com as mulheres...um ator aos 40 anos parece ter 40, 15 anos depois
ele continua parecendo ter 40 anos! Odeio os homens!
LISETE – (RISOS SUTIS)
REGINA – E você?
LISETE – Eu?
REGINA – Sim, você. O que tem a me
contar sobre a sua vida? (SE LEVANTANDO DE SUA CADEIRA)
LISETE – Bem...eu nasci no interior
de São Paulo. Me mudei aqui para a capital há um ano apenas.
REGINA – Creio que trouxeste muitos
sonhos.
LISETE – Trouxe, claro. (SORRI)
Mais esperanças do que sonhos na verdade.
REGINA – Hum...é evidente. Bom, eu
irei tomar um banho, mas eu deixo a porta entreaberta para continuarmos
conversando. (CAMINHA ATÉ A PORTA DO BANHEIRO, ABRE-A) Continue me falando
sobre você...para distrair-me. (ENTRA NO BANHEIRO E LIGA O CHUVEIRO)
LISETE – Bem...como eu lhe disse,
nasci no interior de São Paulo e... (INTERROMPIDA)
REGINA (V.O.) – E aí se mudou?
LISETE – Na verdade fui expulsa de
casa.
REGINA (V.O.) – Ah! Desculpe-me! Perdoe as intromissões de uma velha!
LISETE – Deixe disso! A
senhora...digo, você, não é velha!
REGINA (V.O.) – Oh! Bobagem! A idade de uma atriz não se conta em anos, se
conta em fases. A primeira fase é quando nos dão papéis de moças jovens,
adolescentes rebeldes...a segunda fase é quando nos dão papéis de mãe de
primeira viagem, de irmã mais velha...depois só te dão papéis de avó!
LISETE – Mas...tu ganhaste apenas
um papel de avó...tenho certeza de que podes sair dessa bolha!
REGINA (V.O.) – Temo que não, Lisete, temo que não...é uma bolha enorme,
você entra e não consegue mais sair!
LISETE – Bem...nunca se sabe quando
o inesperado fará uma surpresa, não achas?
REGINA (V.O.) – Eu achava. Quando tinha a sua idade, claro. 10 anos de
atriz e seu mundo cor-de-rosa é aniquilado e jogado aos quatro ventos. Mas
prossiga com a sua história, está me interessando. Se não for invasiva demais a
pergunta, por que fostes expulsa de casa?
LISETE – Entrei para a companhia de
balé e passei 3 meses me apresentando nas noites sem eles saberem.
REGINA (V.O.) – Ora mas que ignorância! O balé é uma arte tão harmônica,
tão bela...é até pecado uma coisa como esta.
LISETE – Concordo. A mente de algumas
pessoas é muito fechada, infelizmente.
REGINA (V.O.) – Quem me dera fossem apenas algumas pessoas, meia-dúzia de
gatos pingados e só! Mas não, é a maioria, meu bem. Saiba disso desde já, e use
como um manual para não se tornar louca ou hipocondríaca!
LISETE – Tens toda a razão!
REGINA (V.O.) – Não pense que com as atrizes é diferente! A sociedade é
muito machista, muito rasteira...acreditam que toda atriz é puta!
LISETE – (RISOS)
REGINA (V.O.) – (RISOS) Pelos seus risos deduzo que
pensavas que eu era uma daquelas senhoras reservadas e que não fala nenhum
palavrão! Estou certa?
LISETE – Para falar a verdade,
está! (RISOS)
REGINA (V.O.) – Olha aí, mais uma limitação à mulher! Somos crucificadas
se dissermos qualquer coisinha fora do padrão que estes gorilas que mandam no
país querem que digamos! Isso sem querer ofender os gorilas, claro! (RISOS)
LISETE – Compreendo. É muito
sufocante não poder se expressar da maneira que se quer, que se é de
verdade...é como se não fosse possível ser uma mulher de verdade!
REGINA (V.O.) – Exato! Este país ainda há de reverenciar uma mulher
independente, sem papas na língua e revolucionária como uma grande dama dos
palcos! Mas mudando de assunto, prossiga, por favor.
LISETE – Bom, na companhia de balé
eu conheci um rapaz...
REGINA (V.O.) – Virou seu namorado?
LISETE – Não. Eu o amei, mas ele
nunca quis nada comigo.
(O SOM DE ÁGUA CAINDO DO CHUVEIRO
PARA)
REGINA (V.O.) – Ah o amor! É tão belo quanto perigoso!
LISETE – Depois de ser expulsa de
casa resolvi vir para cá.
REGINA (V.O.) – Para ser bailarina?
LISETE – Não. Para ser atriz! Mas
não tenho conseguido grandes papéis. Na verdade, não tenho conseguido nenhum! (RISOS
LEVES) Mas eu tenho esperança de que logo isso vai mudar!
DISSOLVE
50%
CENA
10 / FLASHBACK / SÃO PAULO - 1920 / TEATRO
AQUÁRIUS
/ CAMARIM DE REGINA / BANHEIRO/ NOITE / INT.
REGINA
SE VESTE E SAI DO BANHEIRO.
REGINA – Escute-me, mas, por favor, não me leve a mal! (SE
SENTA NA CADEIRA DE CARA PARA A PENTEADEIRA E FALA COM LISETE ENQUANTO SE
MAQUIA EM FRENTE AO ESPELHO)
LISETE – Jamais levaria!
REGINA – Bem...com esse
nome...digamos que Lisete não é um nome forte o suficiente para uma estrela,
entende?
LISETE – É. Entendo. Talvez isso
tenha alguma parcela de culpa no meu fracasso inicial.
REGINA – Não existe fracasso
inicial, o que existe é um começo sem outdoors! Nunca repita que fracassou para
si mesmo! Algo que se repete muitas vezes acaba em se tornar verdade!
LISETE – Tem razão. O que achas que
devo fazer?
REGINA – Muitas atrizes utilizam
nomes artísticos!
LISETE – Tu tens alguma sugestão?
REGINA – Hum...deixe-me
ver...Lisete, vieste para a capital para ter liberdade...liberdade...oh! Já
sei! Podes se chamar Liberté!
LISETE (TOM: ANIMADA) – Liberté?
REGINA – Claro! É um nome forte,
autêntico, novo...Liberté Delamarque! Um nome de peso, um nome de uma grande
estrela! Se tu não aderires, eu mesma aderirei! (RISOS)
LISETE (TOM: EUFÓRICA) – É uma
ideia fantástica! O que é que poderia dar errado?!
(SE LEVANTA E ABRAÇA REGINA)
A
IMAGEM SE EMBAÇA
FIM
DO FLASCHBACK
CORTA
PARA:
CENA
11 / CASA DE LIBERTÉ / CLOSET / TARDE / INT.
LIBERTÉ,
DE PÉ, APANHA UM VESTIDO PRETO, COLOCA SOB O CORPO E SE OLHA NO ESPELHO.
OUVE-SE O SOM DE ALGUÉM BATENDO NA PORTA DO CLOSET.
LIBERTÉ – Quem está aí?
VILMA – Sou eu, Liberté...
(LIBERTÉ CAMINHA ATÉ A PORTA DO
CLOSET E A DESTRANCA, VILMA ENTRA.)
VILMA – Eu sei como é a sua
rotina...
LIBERTÉ (INTERROMPE) Não. Não
sabes, nunca tive rotina. Sempre fui transgressora!
VILMA – (RISOS LEVES) Até mesmo
transgressores precisam se alimentar!
LIBERTÉ – Estou gorda.
VILMA – Ora que bobagem! De que
jeito uma transgressora como você é tão presa em padrões?
LIBERTÉ – Essa não é a questão, a
questão é que não quero terminar a minha carreira interpretando velhas e avós!
VILMA – Creio que isso não
acontecerá. És uma das maiores estrelas do país!
LIBERTÉ – Estrelas também morrem um
dia.
VILMA – Não. Elas apenas se apagam.
LIBERTÉ – Para uma estrela, o
apagar, é pior que a morte. Seu brilho é tudo que você tem... (CAMINHA
ATÉ A PENTEADEIRA, PEGA UMA ESCOVA E PENTEIA O CABELO) e quando o tempo
arranca em um sopro único de você não resta mais nada.
VILMA – Ei... (COLOCA A MÃO SOBRE O OMBRO DE
LIBERTÉ) você precisa se animar...andas muito... (PAUSA)
LIBERTÉ – Depressiva? Triste?
Decadente...
VILMA – Só triste.
LIBERTÉ – Hum...como se as outras
duas não estivessem corretas também...
VILMA – Bem...quer que eu mande
preparar algo para você comer?
LIBERTÉ – Agora não, estou
indisposta.
VILMA – Mas e se...
LIBERTÉ (INTERROMPE) – E se você
deixa-se só eu agradeceria!
VILMA – Hum...tudo bem... (SE
AFASTA E SE RETIRA DO CLOSET)
(LIBERTÉ COLOCA O VESTIDO PRETO SOB
O CORPO E SE ENCARA NO ESPELHO)
DISSOLVE
100%
CENA
12 / FLASHBACK / SÃO PAULO - 1925 / APARTAMENTO DE LIBERTÉ / SALA DE ESTAR /
NOITE / INT.
LIBERTÉ
ESTÁ SENTADA EM UM BANQUINHO PINTANDO UMA TELA QUANDO TOCA O TELEFONE.
RÁPIDAMENTE ELA SE LIMPA AS MÃOS COM UM PANO E SE APRESSA PARA ATENDER O
TELEFONEMA.
LIBERTÉ – Alô?
ERNESTO (V.O.) – Alô, é Liberté
quem está falando?
LIBERTÉ – Sim, claro! Quem é você?
ERNESTO (V.O.) – Diretor da
próxima peça de Regina.
LIBERTÉ – Nossa...que bom que ela conseguiu
um bom papel...para ter aceito deve ser um ótimo!
ERNESTO (V.O.) – Sem dúvidas. Mas
isso não importa, ela não o fará!
LIBERTÉ – Mas...por quê?
ERNESTO (V.O.) – Regina sofreu um
acidente ontem...
LIBERTÉ (APREENSIVA) – Meu Deus!
Ela está bem?
ERNESTO (V.O.) – Sim, claro...só
quebrou um braço e precisará ficar com ele enfaixado por um longo tempo...
LIBERTÉ – Bem, fico feliz em saber
que não ocorreu nada de sério!
ERNESTO (V.O.) – Mas precisamos
de uma substituta para o papel. Você aceitaria vir fazer um testa para a vaga?
LIBERTÉ – E-eu? Claro! Quando será?
(PEGA
UM BLOCO DE NOTAS AO LADO DO TELEFONE E UMA CANETA)
ERNESTO (V.O.) – Amanhã, às duas
da tarde no Teatro Aquárius. Tudo bem para você?
LIBERTÉ – (TERMINA DE ANOTAR) Tudo
ótimo! Eu estarei lá!
DISSOLVE 100%
CENA
12 / FLASHBACK / 1925 / TEATRO AQUÁRIUS / TARDE / INT.
LIBERTÉ
ESTÁ NO MEIO DO PALCO. DESLIGA-SE O HOLOFOTE.
ERNESTO – (SOBE NO PALCO, SE APROXIMA DE LIBERTÉ E
BEIJA A SUA MÃO) Parabéns! O teste foi fantástico! O melhor, sem
dúvidas!
LIBERTÉ – Imagine...tenho certeza
de que os outros também foram muito bons!
ERNESTO – Não tanto quanto o seu! É
como se você tivesse o fogo do teatro queimando por dentro...o papel é seu!
LIBERTÉ – Oh, muito obrigada! (ABRAÇA ERNESTO E RÁPIDAMENTE SE
AFASTA)
(BÊBADA, DESCABELADA E COM O BRAÇO ENFAIXADO,
REGINA ABRE A PORTA PRINCIPAL DO TEATRO, ENTRA E CAMINHA ATÉ PERTO DO PALCO.)
REGINA – Eu posso saber o que isso
significa?
ERNESTO – Achamos sua substituta!
REGINA – (ENCARANDO LIBERTÉ) Você?!
Traidora!
LIBERTÉ – Não! Eu não pensava que
fostes te irritar...
REGINA – Ah! Pare de ser idiota,
Judas! Este era pra ser o meu grande retorno após 5 anos de afastamento dos
palcos...e você me roubou isso!
LIBERTÉ (CHORANDO) – Me
disseram que você não poderia por estar machucada...
REGINA – E foi só saber que você já
se animou toda, não é? Verme...Parasita!
LIBERTÉ (CHORANDO) – Desculpe-me!
Eu não tive a intenção!
ERNESTO – Não dê ouvidos a ela...veja,
está bêbada!
REGINA – Cala a sua boca, seu
cafajeste! Vocês se merecem! (COMEÇA A
CHORAR) Deem-se as mãos e vão para o quinto dos infernos! (SE
VIRA E SE AFASTA EM DIREÇÃO À SAÍDA. MAS DÁ MEIA-VOLTA E RETORNA) Só
tenho uma coisa a dizer: Vão se foder, miseráveis! Eu sou a grande estrela
desse teatrinho de merda! Posso conseguir qualquer papel em qualquer lugar!
Vocês vão ouvir muito de mim ainda...ah se vão! E eu garanto que não será nos
obituários! (AFASTA-SE E DEIXA O TEATRO)
(ZOOM
EM LIBERTÉ CHORANDO)
DISSOLVE
100%
CENA
13 / NARRAÇÃO / TELA ESCURA / SEM LOCAL
LIBERTÉ
(NARRAÇÃO – V.O.) – Depois daquela briga, Regina, bêbada, se envolveu em
um acidente de carro e morreu há poucos quilômetros do teatro. Seu medo se
concretizou: ouvimos falar muito sobre pelos obituários.
CORTA PARA:
CENA
14 / CASA DE LIBERTÉ / BANHEIRO / NOITE / INT.
A
CÂMERA EMERGE DA ÁGUA DA BANHEIA E SOBE ATÉ OS OLHOS DE LIBERTÉ. LIBERTÉ
DESLIZA E FICA TOTALMENTE SUBMERSA PELA ÁGUA.
DISSOLVE
100%
CENA
15 / FLASHBACK / NARRAÇÃO / 1928 / RESTAURANTE / NOITE / EXT.
LIBERTÉ (NARRAÇÃO - V.O.) – Eu
fiz aquele papel. Ficamos 9 meses com aquela peça em cartaz. Praticamente uma
gravidez! (RISOS LEVES) Durante todo aquele tempo, Ernesto esteve ao meu
lado. Era como se fosse uma lua de mel no teatro...com o tempo nossa relação
foi esquentando e nós nos aproximamos muito. 1 mês após o fim da peça nos
casamos. 2 anos depois nossa relação já havia esfriado, e os problemas que
antes não víamos começamos a enxergar.
CORTA
PARA:
CENA
16 / FLASHBACK / RESTAURANTE / 1928 / NOITE / INT.
LIBERTÉ
E ERNESTO ESTÃO SENTADO À MESA JANTANDO. ERNESTO OLHA PARA UMA OUTRA MULHER EM
UMA MESA PRÓXIMA, NA HORA, LIBERTÉ PERCEBE.
LIBERTÉ – Queres levantas-te e se
juntar a ela?
ERNESTO – Não! Que isso!
LIBERTÉ – Então ao menos respeite
minha presença!
ERNESTO – E eu respeito!
LIBERTÉ – Hum... (ERGUE
A TAÇA DE VINHO E BEBE UM GOLE) eu pensei que havia me casado com um
príncipe...mas descobri que ele era um galo... (ERGUE O TOM DE VOZ) um
galo que vive a ciscar por terreiros inglórios!
ERNESTO – Abaixe o tom, não estamos
em casa!
LIBERTÉ – Não me mande abaixar o
tom que eu viro a mesa!
ERNESTO – Ah! Deixes disso! Você é
só papo, só fala e não faz nada!
(LIBERTÉ
EMPURRA A MESA E A DEIXA VIRADA NO CHÃO)
LIBERTÉ – Isso é para lhe mostrar
que estava enganado ao meu respeito. O que eu falo eu faço sim! E lembre-se
sempre, na minha presença, não olhe, nem sequer pense, em nenhuma pessoa além
de mim!
ERNESTO – Sua louca!
(LIBERTÉ SE VIRA E DEIXA O
RESTAURANTE EM MEIO A OUTROS CLIENTES ADMIRANDO A CENA DA BRIGA.)
DISSOLVE
100%
CENA
17 / NARRAÇÃO / TELA ESCURA / SEM LOCAL
LIBERTÉ (NARRAÇÃO
- V.O.) – Dois meses após aquela briga, acabei descobrindo que aquela
outra mulher era sua amante. Uma semana após a descoberta nós nos divorciamos.
Duas semanas após o divórcio descobri que estava grávida. Acho a maternidade
algo sagrado, mas nunca tive dotes para ser mãe. Por isso abortei.
Arrependimento? Nenhum.
FADE
OUT:
FADE IN:
CENA
18 / CASA DE LIBERTÉ / SALA DE ESTAR / NOITE / INT.
A
CÂMERA ESTÁ POSICIONADA NA SALA E FOCA EM LIBERTÉ DESCENDO A ESCADARIA, SE
APROXIMANDO DA SALA E SENTANDO-SE NO SOFÁ.
LIBERTÉ – Vilma!
(VILMA
VEM RAPIDAMENTE DA COZINHA EM DIREÇÃO À SALA)
LIBERTÉ – Estou com fome.
Prepare-me algo, sim?
VILMA – Me alegra saber que a
senhora vai se alimentar nos eixos finalmente.
LIBERTÉ – Eixos são para massas
populares...e massa engorda...
VILMA – Então incluíste humor
político ao seu repertório? (RISOS LEVES)
LIBERTÉ – Só não inclui coisas
novas em seu repertório o que já está acabado, gasto, ralo...aquilo que não tem
mais jeito!
VILMA – Finalmente está se
autovalorizando...
(LIBERTÉ RI INTENSAMENTE)
LIBERTÉ – Vá para a cozinha e
prepare algo, rápido. Não terás de fazer isso por mais muito tempo...
Dissolve
100%
CENA
19 / 1 SEMANA DEPOIS / QUARTO DE LIBERTÉ / SALA DE ESTAR / NOITE / INT.
LIBERTÉ
ENCHE UMA TAÇA DE WHISKY MISTURADO COM ALGUNS REMÉDIOS, SE SENTA EM FRENTE A
ESCRIVANINHA, APANHA A CANETA SOB A MOBÍLIA E COMEÇA A ESCREVER UMA CARTA.
“
Estrelas não morrem...” “Todo mundo é uma estrela e tem o direito de
brilhar”...tudo isso, tudo aquilo...é tudo tão redundante e clichê...tudo ou
nada, como se alguém merece-se a plenitude do tudo enquanto outra pessoa
merece-se a infelicidade do nada...a reciprocidade está acima disso, por isso
afirmo, a morte não tem sentido, se nem a vida tem, por que ela teria? Não me
aches louca, não nesse lampejo de lucidez que ilumina o céu de Minh ‘alma tal
como o raio a rasgar o negro vestido de veludo celestial em uma noite de
agosto. Viva ao seu gosto, a sua maneira, sem rótulos, sem barreiras, sem
limites...a vida é muito corta para estressar-te com probleminhas superficiais.
Nunca deixa a superficialidade alheia diminuir a profundidade das coisas que
você sente, mesmo que esse sentimento seja inútil, como a maioria deles, nunca
deixe alguém diminuir o que você sente! É aquilo que sentimos que diz o que nós
somos, e não os que veem o que fazemos que sabem o que sentimos! Frase mais
doida, não é? Sem sentido...uses como um manual...um ‘Maquiavel Para Pessoas
Que Ainda Não Enlouqueceram’! Não me julguem pelo que vou fazer, nem criem
homenagens póstumas embaladas por lágrimas ressentidas e frases comovidas...se
presenteiem dando-se e recebendo-se em si todo o direito de amar e de anojar aquilo
e aqueles que seu coração mandar. Estrelas não morrem, de fato, mas quando a
luz do palco se apaga, a estrela murcha, diminuiu sua forma e tamanho, e sua
vez passa a ecoar cada vez mais baixa...baixa...vira um sussurro...um
murmúrio...um gemido em meio a gritos sinuosos e escandalosos das esquinas
iluminadas pelas ilusões da juventude...toda estrela um dia apaga seu brilho,
esse dia chegou para mim, bem como chegará para você um dia.
Para sempre, Liberté.”
(EM
POUCOS GOLES, LIBERTÉ BEBE TODO AQUELE WHISKY MISTURADO COM REMÉDIOS E COMEÇA A
SENTIR SUA VISÃO FICAR TURVA. A CÂMERA VAI SUBINDO E MOSTRANDO DE CIMA LIBERTÉ
DESFALECENDO ENQUANTO A IMAGEM VAI SE ESCURECENDO.)
FIM.



0 Comentários