Capítulo
XV
Priscilla
– A Rainha Do Deserto
(The Adventures Of Priscilla, Queen Of The Desert –
1994 – Dir.: Stephan Elliott)
Roxanne explicou para Tom o
que pretendia: um caderno especial na revista reservado á moda das Drag Queens,
com muita cor, e cenários exuberantes. Graças ao fundo verde, poderíamos
inserir as modelos nos lugares mais inusitados: dentro do bunker de Hitler, na
última Ceia, na queda do muro de Berlim, enfim, em vários momentos históricos e
locais turísticos. A matéria de capa seria sobre a moda trans. Como as mulheres
que viraram homens se vestem, e vice-versa. Claro que ambas as reportagens não
seriam só sobre moda, teriam um fundo jornalístico, algo inovador para esse
tipo de publicação. A reportagem seria das dificuldades no mercado de trabalho
para pessoas trans e drags, e traria relatos das modelos. A primeira coisa a se
fazer foi a capa, que no dia seguinte já estava estampada no metrô, enorme e
chamativa.
Gerson
nos ajudou muito e senti uma grande ligação com ele e Roxanne. Donnie viu o
quanto Gerson estava se esforçando para voltar ao normal, e como parecia ter
mesmo se desligado de Joane, então conseguiu uma vaga para ele na sua empresa
de publicidade.
- Vou confiar em você amigo, porque preciso mesmo é de
alguém com experiência. Mas vou confiar que você vai aprender rápido e me
ajudar bastante, afinal, temos motivos em comum para querer que a empresa
cresça. – disse Tom, e Gerson concordou, com sinceridade. E realmente, a
ousadia de publicar um outdoor com uma drag e um casal trans no metrô aumentou
bastante a procura pela agência de Donnie.
Um dia
antes das revistas irem para as bancas, nos reunimos no FRIENDS para comentar e
celebrar o sucesso. Para garantir boas vendas, apenas duas fotos foram usadas
como marketing na internet. Quem quisesse ver toda a matéria, teria que comprar
a revista. Estávamos todos animados. Tom estava muito feliz e isso me deixou
mais feliz do que o normal. Donnie e Joane voltaram á época do namoro: era só
romance no ar. O mesmo com Fred e Mila, Roxane e Gerson, que agora já nem
escondiam a química entre eles, Lia e Robert, Vera com Tiago e Beatriz, e até
nosso chefe estava presente, além de Rebeca e Gina, apaixonadas como nunca.
Steve definitivamente não fazia mais parte da vida delas.
- Acho que a revista vai ser um sucesso – disse Roxanne
– O que recebi de emails e a resposta na internet indicam realmente que vai
estourar. Agimos rápido, o que é importante, pois não demos tempo da
concorrência copiar e se adiantar.
Nós todos
brindamos ao sucesso geral, e os casais seguiram para suas casas. Foi estranho,
porque eu e Tom fomos os únicos á ir sozinhos, e resolvemos ir caminhando numa
noite agradável. Meu chefe deu carona a Vera, Tiago e Beatriz, e assim que os
dois desceram, ele puxou Vera pra conversar.
- Você vai me perguntar por que estou falando isso
agora, mas durante um bom tempo eu lutei contra isso por ser seu chefe, mas
como agora não sou mais, eu preciso te dizer Vera: eu sempre te amei! Não estou
pedindo resposta, nem nada. Só precisava lhe dizer que estarei ao seu lado no
que precisar, até o final.
- Chefinho, eu já desconfiava. No começo achei que fosse
coisa da minha cabeça, e depois que vi não ser, pensei em pedir demissão e me
declarar. Mas então descobri a doença, e achei que não valia á pena arriscar, e
precisaria do trabalho mais do que nunca. É confortante saber que estará do meu
lado, mas creio ser tarde demais – respondeu Vera, tentando controlar as
lágrimas.
- Nunca é tarde demais Vera. Eu posso morrer antes de
você. Ou você pode morrer amanhã, ou daqui á um ano, não me importo, quero passar
esse tempo ao seu lado. Me dá uma chance?
E então
mais um casal se encontra na história da minha vida. Tudo parece acontecer tão
rápido na vida dos outros e a minha anda em câmera lenta. Vera deu a chance á
Rodrigo, e logo que teve confiança suficiente em Tiago e Beatriz, resolveu que se
mudaria para o apartamento de Rodrigo, nosso chefe. Assim como Robert pediu Lia
em casamento logo após a noite de brinde no FRIEND. Ele á levou para um hotel,
havia pétalas de rosas, champanhe e tudo á luz de velas para ele propor
casamento, que lógico, ela aceitou.
A
revista foi lançada, e o que era pra ser um sucesso deixou todo mundo sem
palavras. Foi mais que um sucesso! Um verdadeiro estrondo. Uma chuva de elogios
na internet por parte das comunidades LGBT’s e apoiadores das minorias. Recorde
de venda da Model Charm, que teve que imprimir uma segunda edição três dias
depois do lançamento. Reportagens na TV falavam da ousadia e da denúncia de
preconceito contra trans no mercado de trabalho. E foi mais além: Roxanne e Tom
foram convidados para dar entrevista em um conceituado programa de TV. Lógico
que aceitaram, mas com uma condição: o criador da ideia deveria ir junto! No
caso: eu!
No
programa falamos da ideia, dos conflitos da sociedade em aceitar as diferenças,
da revista que foi notícia até no exterior, do trabalho de Tom e da qualidade
das fotos e da revista, que inovou em suas páginas mais coloridas e com papéis
recicláveis, sem perder a qualidade. Isso foi só a ponta do iceberg para a
Model Charm. A revista virou sinônimo de glamour, teve ótimas vendas nas
edições seguintes, não importava o assunto, e com isso Roxanne também inovou:
contratou três mulheres trans para trabalharem para ela, já que o trabalho
aumentou. Depois de informatizarmos toda a Model Charm, a nossa empresa ganhava
anúncios de destaque na revista, e aumentou bastante o número de procura pelos
nossos produtos, e claro, Rodrigo, meu chefe, seguiu o exemplo de Roxanne e
contratou uma drag e um trans para fazerem parte da equipe. Faziam isso para dar
exemplo, para mostrar que havia espaço pra todos, e sem querer isso os fez
ganhar grandes admiradores no mercado e no público em geral.
No
estúdio de Tom também não foi diferente. De repente vários trans, gays e drags
queriam books fotográficos para tentarem ser modelos, ou apenas para guardar de
lembrança. Ele se obrigou a trabalhar até nas manhãs, tamanha foi a procura por
seus serviços. A tarde ajudava ele e as coisas ficavam mais fáceis. Mas com
tanto trabalho, via Tom emagrecendo muito á olhos vistos e isso me preocupou.
Estaria ele se drogando novamente? Estava tomando direito os seus remédios?
Iria conversar com ele sobre isso outra hora.
A
empresa de publicidade de Donnie também teve sua parcela de aumento referente á
revista. Outras revistas procuravam seu trabalho de divulgação e publicidade.
Logo teve que contratar mais pessoas, e uma delas foi Beatriz, como estagiária,
mas já era um incentivo pra ela iniciar no mercado e aprender algo. Gerson
aprendeu rápido e logo ele e Roxanne resolveram alugar um apartamento e juntar
suas coisas. Ele abriu mão de registrar o bebê de Joane, mas não de poder
visitar sempre que quisesse. A decisão foi aceita de bom grado por Donnie e
Joane, que estava perto de ganhar já. Estávamos quase no fim de ano, e tudo ia
bem. Até receber uma ligação dos pais de André. Não me deram outra opção á não
ser ir até sua casa, pois André estava ruim, e eles não sabiam mais o que fazer.
Cheguei e não vi André, mas seus pais me fizeram sentar e relataram tudo.
- Desde que se assumiu, para nós nada mudou. Mas quando
ele disse que ia lutar por você, pois havia nos contado toda a história,
sabíamos que já havia passado muito tempo, que você deveria ter seguido sua
vida. E pela reação dele depois de vocês conversarem, pude ver que estávamos
certo. Ele não sai do quarto, não se alimenta, só chora. Já levamos no
psiquiatra, psicólogo, mas os remédios só acalmam, não o fazem melhorar. Não
sabemos o que fazer!
Subi ao
quarto e resolvi falar com André. Era um carma que me seguiria pro resto da
vida, mas não podia deixá-lo assim. Após tentar animar ele, ele tornou a falar
sobre nosso relacionamento, que quer voltar e precisa de mim. Já estava impaciente
quando me ocorreu uma ideia.
- André, te veste agora que nós vamos sair! – disse
decidido – Te espero lá embaixo enquanto faço uma ligação.
Passou
quase trinta minutos quando chegamos ao nosso destino: a casa de Dona Neusa,
tia de Lia, que nos recebeu alegremente. Após conversarmos um pouco, eu fui
fumar um cigarro na rua para os dois conversarem á sós.
- Meu filho, você está muito, mas muito mesmo
acompanhado de energias negativas que estão tirando sua força e isso pode
resultar em graves doenças. Você fez mal uso de algo que é uma benção: o sexo.
O sexo é para ser feito por amor, por troca, cumplicidade, e você fez isso por
prazer, para colecionar parceiros. O sexo é a maior troca de energias que pode
existir entre duas pessoas, e as pessoas com quem você se relacionava não eram
tão evoluídas á ponto de transmitir boas energias. Agora você está impregnado
disso, e mesmo que diga que mudou, você sabe que não mudou! – disse Dona Neusa,
e continuou, vendo que André se mantinha fixo na conversa.
- Assim que Frank voltar para você, vai começar todo o
ciclo novamente, porque você está carregado. Você precisa cuidar de si, do seu
lado espiritual, da sua saúde, e só depois pensar em ter um relacionamento, que
não vai ser com Frank. Vocês dois procuram coisas diferentes. Frank procura
amor, você procura posse. É teu orgulho ferido que está te fazendo sofrer. Você
nem ama Frank. Você nem se ama. Você foi promíscuo, usou outras pessoas como se
fosse objetos para seu prazer sem se importar com o que elas procuravam. Quando
se tem uma relação puramente sexual com alguém, sem amor, várias pessoas saem
machucadas: uma delas é você, que volta pra casa sentindo-se ainda mais vazio.
A segunda é o parceiro, que saiu a procura de um amor, ou algo mais, mas só
encontrou uma transa rápida e deu. Outros são as pessoas destinadas á vocês.
Sua alma gêmea e a alma-gêmea do outro, que por culpa dessas energias
negativas, se afastam cada vez mais, ficam mais tristes, mais carentes, e
acabam entregando seu amor para alguém que não amam, apenas lhes dão atenção.
Percebe o efeito dominó de se relacionar com uma pessoa errada? Pensa nisso e
volta semana que vem que conversaremos melhor. Agora estou esgotada. – disse
Dona Neusa, sem intervalos, e assim se levantou e abriu a porta para André
sair.
- Cuide de teu amigo Frank! Esse rapaz está em péssimas
companhias invisíveis. Ele precisa de gente boa e feliz ao lado dele. – disse
ela ao se despedir de mim.
André
confessou que estava se sentindo melhor, que a conversa com Neusa havia deixado
ele mais leve. Resolvemos ir á um restaurante jantar e depois fomos ao meu
apartamento conversar e tomar umas cervejas. Achei que ele deveria se distrair,
e seguindo o conselho de Dona Neusa, resolvi fazer companhia pra ele naquela
noite. Avisei os pais dele que ambos tínhamos bebido e que André passaria a
noite em minha casa. Me contou que realmente não estava completamente
arrependido de sua vida anterior, de festas e paqueras, mas que sabia que teria
que mudar. Dona Neusa fez ele perceber quantas pessoas ele fez serem iludidas
por ele.
- Sim André, a maioria das pessoas que saem á noite pra
se divertir, mesmo que neguem, querem encontrar alguém. Mas como está cada vez
mais difícil, percebem que a única maneira de terem uns minutos de atenção e
afeto seria transando com algum estranho ou conhecido da balada. Nada contra
quem faz isso ou frequenta esses lugares. Mas você realmente acha que vai
encontrar o amor da sua vida num local cheio de bêbados, drogados, com uma
música que fica impossível ter uma conversa, aonde as pessoas vão com tão pouca
roupa que parecem que vão só pra exibir o que tem, e depois reclamar que não
são valorizados. Acho meio difícil. Eu pelo menos não imagino tendo meu
primeiro encontro cercado de fumaça e barulho por um cara com bafo de cerveja.
Depois de muita conversa, é
claro que André dormiu no sofá, e por ameaça minha, ele não tocou no assunto de
voltarmos. Éramos dois amigos lembrando o passado e contando histórias. Até que
de manhã cedo bateram na minha porta e André atendeu, já que eu estava no
banho. Era Tom.
- Mas que merda é essa? Não me diz que Frank
enlouqueceu? Cadê ele? – gritou Tom
- Está no banho. Calma, não é o que você está pensando!
- Pra tua sorte eu não estou pensando em nada no momento,
seu filho da puta. Mas posso pensar em mil maneiras de arrebentar tua cara se
não ficar quieto no teu canto, entendeu? – disse Tom, que entrou no banheiro
antes que eu pudesse fazer qualquer coisa. Ficamos mudos nos olhando, eu nu,
ele triste. Até que ele resolveu quebrar o silêncio e perguntar com lágrimas
nos olhos:
- Por que você fez isso? – e saiu.
* Texto escrito e registrado por Patrick Lima Prade.
0 Comentários