ENCONTROS - Capítulo 10


Capítulo X

Antes Do Amanhecer
(Before Sunrise – 1995 – Dir.: Richard Linklater)


            Lia fingia dormir quando Robert voltou para a cama. Ela estava amedrontada e ao mesmo tempo curiosa, mas novamente resolveu não tocar no assunto sem antes falar com Vera. “A família de Vera é a mais complicada que já vi na minha vida! Não tem ninguém normal!” pensava Lia tentando dormir ao lado do homem que passou a amar e que agora descobriu, podia ter matado a própria noiva.
            Tom e eu tomamos vinho e conversamos muito antes de ele tocar no assunto que o havia levado ao meu apartamento. Então perguntei o que ele queria me dizer, e ele tomou coragem de falar.
- Sabe, antes de você morar aqui, bem antes, eu era meio ‘vida-louca’. Bebia, me drogava, saia todas ás noites, fazia sexo com quem aparecesse. Para mim a vida era como se fosse o último dia, aquela velha história, mas com o tempo fui vendo que nunca era o último dia e as coisas que fazia começaram a perder o sentido. Então resolvi focar na minha profissão, fui me afastando de alguns amigos e hoje sou um cara centrado...
- Centrado? Sério Tom? – interrompi – Não tenho nada á ver com sua vida, mas toda semana vem várias mulheres diferentes ao seu apartamento, você acorda só no almoço, nunca vi você arrumado para ir trabalhar. Você acha mesmo que está “centrado”?
- Você acha isso? – ele perguntou sorrindo – Nossa, você é um péssimo detetive! Eu trabalho fazendo books fotográficos para modelos de uma agência famosa no estado. Comprei os dois apartamento para fazer de um deles meus estúdio, aonde as modelos vem fazer seu book. Essas mulheres diferentes que você fala são clientes, e não misturo trabalho com prazer. E como o estúdio é na minha casa, não tenho horário, nem uniforme para usar...
            
           Fiquei envergonhado por, novamente, ter julgado alguém pelas aparências e atitudes, sem saber o que se passava. Pedi desculpas e ele passou a me explicar como funciona seu trabalho, e eu e Dexter fomos até o apartamento dele para ele me mostrar o estúdio. Nunca havia passado da porta, e fiquei impressionado com a organização de seu apartamento. Muitos livros e filmes, e na parede que dava para o outro apartamento ele abriu uma enorme porta, onde ficavam vários cabides com roupas incríveis, holofotes, painéis de paisagens, computadores e muitas máquinas fotográficas. Era como se estivesse em outro mundo. Adorei conhecer esse lado de um amigos que julgava ser vazio e idiota, mas no fundo era um cara comum como eu. Agora no apartamento dele, foi ele quem preparou as bebidas e a conversa continuou no tapete de sua sala, ao som de The Beatles.
            Ainda não era manhã, Lia não conseguia dormir e Robert notou. Perguntou o que estava acontecendo e ela começou á chorar. Não conseguia segurar a curiosidade, então falou o que se passava na sua cabeça.
- Robert, o que aconteceu na noite do acidente com Elisa? Porque você ainda conversa com ela?
- Lia, não posso mentir pra você! Elisa estava estranha nos últimos dias e perguntei o que houve. Ela me disse que estava saindo com outro homem e que não queria mais nada comigo. Eu fiquei chocado e perdi a consciência. Não sei se desmaiei ou entrei em colapso, quando dei por mim estávamos descendo o acostamento e o carro bateu em uma árvore. Eu estava de cinto, mas Elisa não. Então ela saiu pelo para-brisa e caiu sobre umas rochas. Quebrou o pescoço e morreu – disse ele entre lágrimas – Ela conversa pouco comigo, diz que eu não mereço estar com ninguém. Sou eu quem mais falo coisas pra ela, mas ela sempre some quando começo á chorar.
- Querido, minha tia ligou e falou que entrou em contato com Elisa. Elisa disse á ela que você tentou matá-la. Que viu que ela estava sem cinto e bateu na árvore de propósito porque não aceitava o fim do relacionamento.
- Não acredito! – disse assustado – Então é isso que Elisa pensa de mim? Que quis matar ela, mesmo sabendo o quanto á amava? Ela está errada. Nunca faria isso. Preferiria mil vezes que ela estivesse viva e feliz ao lado de outro cara do que morta. Até preferia que eu estivesse morrido.
             Robert chorava muito e Lia confiou em suas palavras. Foram muito sinceras. A solução, disse ela, seria os dois irem falar com Neusa e tentarem explicar para Elisa o ocorrido e ele pedir perdão diretamente á ela, através de um médium. Ele concordou, se isso fosse trazer paz aos três. Nessa hora, Steve levantava e se vestia e Gina pediu para que ele ficasse até de manhã com ela. Ele riu, e pediu pra ela não se apegar á ele, pois era só sexo, e ele jamais deixaria a esposa para ficar com ela. Que se ela quisesse mais noites com ele teria, mas não passariam de encontros sexuais, nada mais, pois ela não era uma mulher tão boa assim á ponto de ele arriscar o casamento. Gina o deixou ir, e ficou chorando até o dia raiar. E antes do sol nascer, Liliam deu seu último suspiro através das máquinas e deixou a família. Vera ficou em choque e teve que ser sedada. Não conseguiu avisar ninguém, e os médicos aguardariam até o dia seguinte para tomarem qualquer providência, pois a polícia precisava fazer a perícia, já que fora homicídio. Trevor dormia tranquilamente na casa do irmão. Sabia que havia feito o serviço de forma limpa, com luvas e numa rua sem movimento, sem testemunhas, sem câmeras de segurança por perto. Tiago, o irmão mais novo de Vera foi acordado na pensão onde se escondiam, pela namorada, Beatriz, que havia fugido com ele. Ela estava com muita dor na barriga e sangramento. Os dois correram ao hospital mais próximo e descobriram que ela estava grávida, mas sofrera um aborto espontâneo, provavelmente pelo uso de drogas pesadas. Tiago também amanheceu chorando, sem saber que além de um filho, havia perdido também a mãe. Joane acordou antes de amanhecer, pois tinha algumas coisas pra fazer antes de ir ao trabalho. Precisava terminar de separar suas coisas o mais rápido possível, mesmo com as lágrimas impedindo de ver claramente o que fazia. Donnie e Gerson foram dois que não dormiram, pensando na conversa que teriam com Joane no dia seguinte. Já Fred roncava, dificultando ainda mais a noite de Gerson.
            No apartamento de Tom, voltamos a conversar sobre trivialidades. Ele estava adiando o assunto principal. Então fui direto, pois as horas passavam e em pouco tempo teria que ir trabalhar. Pra mim não era problema trabalhar sem dormir. Eu recuperaria na noite seguinte.
- Então, você me trouxe aqui pra mostrar seu estúdio, beber vinho, ouvir música boa, mas não falou o que queria comigo.
- É um assunto delicado Frank, e preciso saber se você é meu amigo, ou só um vizinho de porta? – perguntou Tom.
- Nossa cara, claro que sou seu amigo! Pode falar sem medo, prometo não crucificar você! – respondi tentando descontrair.
- Bem, como te falei, minha vida era desregrada. Muito sexo, drogas e rock, e depois que parei, eu fiquei um tempo na abstinência. Lutei contra meus instintos sexuais e vício pelas drogas, e consegui sozinho. Nesse ponto eu nunca tive problemas. De uns tempos pra cá venho me sentindo meio estranho, cansado, muito sono e fraqueza. Fui ao médico e descobri que sou soro positivo. – disse ele de modo direto, como se quilo precisasse sair ou ele explodiria. Senti o alívio que ele sentiu ao contar. Vi até que sua tensão diminuía, mas que ele se controlava para não chorar.
            
         Me abracei á ele e deixei ele chorar uns minutos, depois pediu desculpas e serviu mais bebidas para nós. Conversamos sobre as opções dele e ele disse que já começaria o tratamento na semana seguinte, mas estava com tanto medo. Expliquei á ele o que sabia da doença e do qual normal é a vida de alguém com HIV. Ele já estava sonolento, talvez pela tensão que saia do corpo agora relaxado, talvez pela bebida, ou porque o sol já estava quase surgindo no horizonte. Me despedi e junto com Dexter deixamos ele ir dormir. Nos abraçamos forte antes de ele fechar á porta e eu voltar pro meu apartamento.
            Não era possível! Eu já não estava aguentando mais tanta coisa, tão rápido, tão intenso. Minha vida era minha e agora vivo somente pensando, ouvindo, ajudando os outros e isso até me fazia bem, mas ver meus amigos sofrendo por doenças, traições, amores, mortes. Isso não fazia sentido! Porque Deus teve que me tirar do meu apartamento e me mostrar tudo isso? Era muito melhor quando eu podia voltar pra casa, tranquilo e ficar no meu mundo. Agora estou no mundo dos outros. Não consegui controlar o choro, a raiva, a dor. Tomei um banho morno pra relaxar, fiz a barba, me arrumei como se fosse á uma festa. Impecável, como diria Lia. Mas não me arrumei para ir pro meu primeiro dia de trabalho. Não! Não iria trabalhar. Tenho outros planos: fazer algo que já devia ter feito á muito tempo. Fazer algo por mim, sem deixar os outros irem me levando, me puxando sem querer para a vida deles.

            
            Tomei meu café da manhã antecipado, não eram 5h30min quando terminei. Fui ao meu escritório e abri a gaveta. Uma caixa de madeira, mas dentro dela algo que á anos venho guardando. Era hora de fazer o que tinha de ser feito. Peguei a caixa, coloquei na minha pasta. Beijei Dexter e sai para o estacionamento. Odeio dirigir, prefiro ir á pé para o trabalho, mas para onde iria, precisaria do carro. Era longe. O caminho do Frank, o meu caminho. Que está acabando aqui, Frank não existirá mais. As vidas vão seguir em frente. Lia, Robert, Vera, Tom, todos vão estar lá, mas esse Frank não. Estava amanhecendo e eu peguei a estrada rumo ao meu destino. Daqui pra frente, a história segue, mas outras pessoas terão que contar. Para esse Frank, a história termina daqui á alguns quilômetros.

          * Quarta, ás 22h40min, uma nova visão sobre a história: Como ficaria ENCONTROS sem Frank?

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