Pessoas andam agitadas de um lado para o outro na saída do aeroporto. Entrando em seus
carros, táxis, e afins, apressadamente tentando se esgueirar das frias gotas de
chuva que desabavam sobre a cidade naquele dia para não desmancharem seus
perfeitos penteados carregados de laquê, fixador, gel e o nem tanto natural
efeito de uma chapinha barata. Resumidamente, nossa história começa com aquilo
que vai acompanha-la por todas as linhas: a aparência. Agora, continuando, no
meio dessa multidão, uma mulher acompanhada do estridente som seu salto alto no
ritmo dos seus passos: “clack-clak-clack-ckack” entra em um táxi. O taxista, um
homem que aparentava ter por volta de 60 anos e umas duas ou três pontes de
safena virou-se para ela e quebrou - se é que o par de salto alto de antes já
não fez isso o silêncio:
TAXISTA: - Boa tarde. Para onde a senhora está indo?
Maria Alice o encarou sem esboçar nenhuma
reação, mas respondeu por conveniência da situação:
MARIA ALICE: - Sabe o Condomínio Vila Assunção, passando
pela Avenida Guaíba?
TAXISTA - Hã...sim, senhora.
MARIA ALICE: - Lá é onde quero que você me leve.
TAXISTA: - Perfeitamente.
MARIA ALICE: - E siga o caminho direto pra lá, nada de
dar uma de espertinho indo por uma rota mais longa, ok?^
O taxista suspira estressado e responde Maria
Alice após uma breve pausa:
TAXISTA: - Claro...
Fora do táxi, a chuva continua com toda a sua
força. Maria Alice se distrai e se deixa perder nos seus pensamentos, nas suas
memórias. “É...finalmente a megera foi domada...pela morte”, pensou ela
enquanto tentava lembrar de algum bom momento com a tia avó. Até que se lembrou
de um: aos 17 anos, na casa de Odete (a morta da história, ou pelo menos é o
que parece), tendo uma discussão fria com a robusta senhora que lhe examinava
com seus grandes olhos castanhos, de cima para baixo, o cabelo sempre intacto,
fixo e se arqueando para cima de tanto laquê, até que finalmente rompeu o
silêncio:
ODETE: - Minha querida...quase 18 anos e você taí...te antena, guria!
MARIA ALICE: - Aí?
ODETE: - É...largada, sem perspectiva! Me fala, qual
é a sua meta?
Maria Alice a fitou nos olhos por alguns
instantes e logo respondeu:
MARIA ALICE: Hmm...não tenho nenhuma.
ODETE: - Nenhuma?! Ah! Vamos, Maria Alice... -
espantada com a resposta.
MARIA ALICE: - Espero um dia não acordar aos 40 vendo que
desperdicei a minha vida em um emprego que eu detesto porque fui pressionada a
escolher uma carreira cedo demais.
Odete fica olhando fixamente surpresa com a
resposta enquanto Maria Alice abre um sorriso sarcástico. O flashback da moça é interrompido por um
raio que passa rasgando o céu. “E então, vai fazer algo especial? ” - Disse o
taxista quebrando o silêncio. Maria Alice olhou para ele, tirou um dos fones de
ouvido e lhe respondeu:
MARIA ALICE: - Hum...hoje?
TAXISTA: - É...algum programa, sei lá.
MARIA ALICE: - Bem...um velório não é exatamente o que eu
chamo de ‘programa especial’.
TAXISTA: - Ah! Me desculpe, eu...
Maria Alice lhe interrompe antes que o taxista
termine o seu pedido de desculpas.
MARIA ALICE: - Ah! Não. Sem problemas. A Tia Odete era do
tipo que se fazia de morta para comer o coveiro mesmo.
O taxista fica calado com a resposta enquanto
Maria Alice abre um sorriso sarcástico. Enquanto isso, a estrada está
deslizante, baixa visibilidade. Em um trecho de pista ocorre um acidente e
parte do asfalto se solta.
Tempos depois, ela chega na casa de sua mãe,
quem abre a porta é Jessie, antiga amiga de escola de Maria Alice, aliás, a
única.
MARIA ALICE: - Hey! Você por aqui?
JESSIE: - Você sabe, cheguei atrasada pro desbunde hippie, só me restou
vir pra cá.
MARIA ALICE: - Comida grátis?
JESSIE: - Exatamente.
MARIA ALICE: - Senti saudades de você sendo...hãm...você?
JESSIE: - Obrigada. Também senti saudades do seu negativismo. Vem, entre
na...sua casa?
Maria Alice vai entrando na casa repleta de
pessoas. Uma mulher que aparentava 30 mas tina 60 anos vem em sua direção. Ela
lhe dá um forte abraço.
MARIA ALICE: - Oi, mãe.
MIRTES: - Oi...como vai, minha filha? Não quer subir e passar um blushzinho? Tá tão apagadinha...
MARIA ALICE: - Talvez se eu tivesse 5 anos, maria-chiquinha
no cabelo e um vestido de babados.
MIRTES: - Oh! Filha...você não mudou nada.
MARIA ALICE: - Você também não...hã...isso não devia ser
tipo, um ambiente mais triste?
MIRTES: - Seria se a Odete não fosse odiada por 90% das pessoas que as
conheceram.
MARIA ALICE: - E onde estão as outras 10%?
MIRTES: - Em algum lugar além do arco-íris.
MARIA ALICE: - Mortos?
MIRTES: - É.
MARIA ALICE: - É estranho usar ‘O Mágico de Oz’ pra isso...ok? Pare.
Elas ficam em silêncio por alguns instantes
até que Maria Alice volta a falar.
MARIA ALICE: - E o enterro?
MIRTES: - Foi hoje de manhã...vai dar um pulinho no cemitério?
MARIA ALICE: - Talvez. Nesse momento fico decepcionada por
não ter feito sapateado...perdi a chance de fazer um pocket show em cima do túmulo.
MIRTES: - Maria Alice! - a repreende sua mãe reprovando o comentário.
MARIA ALICE: - Me desculpe. Espero que a Tia Odete não tenha
nos escutado do nada para onde ela foi parar.
MIRTES: - Hum...ainda cética?
Maria Alice ponderou por alguns instantes
antes de responder.
MARIA ALICE: - Cética? De forma alguma! Eu acredito em
pizza. Pizza para todos as pessoas do mundo.
Continuou aquela reunião póstuma por mais
algum tempo. Maria Alice permaneceu ali mais alguns minutos e saiu rumo ao
cemitério. Como a chuva já havia cessado ela foi caminhando, e além disso,
caminhando se poupava de conversas com taxistas desconhecidos. A atmosfera
parecia mudar no cemitério, ficava mais densa, pesada. Por entre as sepulturas
ela caminhava na procura do descanso final de Odete, até que se aproxima de um
túmulo e para o seu espanto, não era de Odete, mas sim o seu.
“Então estou morta.
Isso explica muita coisa. Devo estar morta desde o dia em que nasci”, pensou
ela. Ela ficou lá, em choque, por alguns minutos, não tentando digerir a
situação, até porque morto não digere coisa nenhuma, simplesmente contemplando
o seu final. Como um artista quando conclui uma obra ou coisa do tipo. Até que
ela sente uma mão em seu ombro e se vira na direção da pessoa, levando um susto
na hora quando viu quem era: Odete.
MARIA ALICE: - Ah...tia Odete. Oi. Como vai? Morta também?
ODETE: - Oh! Não, minha querida, não! As lendas permanecem, os mitos são
para sempre.
MARIA ALICE: - Certo...então, o que você faz aqui?
ODETE: - Desencarnando.
MARIA ALICE: - Hum...parece que finalmente estamos com o
mesmo passatempo.
ODETE: - Na morte todos os gatos são pardos...
MARIA ALICE: - Por falar nisso, como eu morri?
ODETE: - Você não está morta na verdade, é só um sonho enquanto seu corpo
está em coma no hospital.
MARIA ALICE: - Oh...é?
ODETE: - Claro que não. Você morreu em um acidente de trânsito. O táxi
desviou para não ser engolido por todo aquele trecho de asfalto descolado, ou
coisa do gênero e acabou batendo em um poste.
MARIA ALICE: - Ah...entendi...morri dando com tudo em um
poste...
ODETE: - Na verdade o poste caiu em cima de você mesmo. O enterro foi de
caixão fechado por isso.
MARIA ALICE: - Imagino. A morte não costuma fazer muito bem
a aparência das pessoas. Então no fim é isso? Depois de uma vida inteira de
convenções sociais, o pós-vida ou sabe se lá o que vem depois não passa de uma
repetição do que veio antes...
ODETE: - Não espere resposta dos mortos, menos ainda dos recém mortos.
As duas vão caminhando até desaparecerem por
entre as lápides. Será mesmo que Maria Alice morreu e fantasiou com tudo aquilo
que sucedeu o fatídico acidente ou está delirando no hospital? Pode tudo isso
ser uma ilusão? Quem sabe, a própria morte não seja uma ilusão, uma aparência,
ao invés de uma viagem. Como viagem não é a última, mas como ilusão e aparência
é.
FIM.
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