FOLHAS DE INVERNO
Carla Falcão
André Reis
Folhas de Inverno
As coisas eram assim
Eu havia o conhecido no verão. Estava começando no meu novo emprego no escritório dele. A rotina naquele verão era caótica e infernal. O calor era insuportável e fazia minha maquiagem escorrer pelo rosto. Eu sempre chegava com uma aparência pouco agradável no trabalho, e corria para o banheiro para dar uma melhorada. Mas lá na empresa tudo era mais calmo. Eu sentia o choque térmico sempre que saía da rua e passava pela porta de vidro da entrada do prédio.
Eu não sei o que me chamou atenção nele. O jeito que ele me tratava era estranho, ninguém nunca havia me tratado daquele jeito. Ele era gentil e engraçado, nunca invadia meu espaço. Quando me tocava com aquelas mãos grandes e grossas eu ficava inquieta. Mas não era de forma abusiva como costuma acontecer. Foi esse jeito único que me chamou atenção. Os rumores entre os colegas de trabalho só aumentavam, mas nós tentávamos sermos discretos o máximo possível. tem vezes, muitas vezes, que você não consegue disfarçar um sorriso bobo.
Certa vez, quando entrei no escritório, havia um espelho com bordas vermelhas sobre a minha mesa, ao lado havia um envelope rosa, lacrado, com o seguinte recado: “Para você”. Me sentei na cadeira e me olhei no espelho. Eu gostei do que vi. Eu estava bonita, pelo menos para mim. Estava maquiada, elegante, serena. Estava extremamente eufórica. A mulher mais feliz da face da terra. Estava satisfeita comigo mesma, com Adrian, com nós dois. Eu realmente acreditava que ele era o meu único e verdadeiro amor, realmente acreditava que ficaríamos juntos para sempre. Eu sei, parece clichê, mas o amor, a paixão, nos leva a pensar assim. Ficamos bobos... ingênuos, e depois pagamos o preço por isso. Eu abri o envelope lacrado e havia um recado escrito a mão, o qual li mentalmente, com a sua voz.
Para você saber, todo dia que se sentar nessa cadeira e se olhar nesse espelho, que você é linda de todas as formas, Kat, que você é especial para mim. Você é a mulher da minha vida e eu quero viver com você para sempre...
- A
Adrian odiava clichês, mas olha o que ele havia acabado de fazer?! Com o envelope em mãos, perplexa, os pêlos eriçados, eu me olhava no espelho. Meu rosto começou a formigar, minha visão estava ficando embaçada pelas lágrimas. Fechei os olhos, uma gota de lágrima percorreu um caminho pelo meu rosto.
– Kat. – ouvi sua voz me chamar.
Abri os olhos, não consegui enxergar direito, apenas uma silhueta de um homem usando uma roupa social. Limpei as lágrimas. Adrian estava na porta do escritório, sorrindo, segurando algo em mãos. Ai meu Deus!
– Kat... casa comigo, por favor?
As coisas ficaram assim
Na TV, meteorologistas afirmam que uma grande nevasca se aproxima e que não é recomendável sair de casa. Céus! Eu preciso sair daqui. Meu coração dói e pulsa muito forte a cada item colocado em minha caixa de mudança. Eu estava despedaçada, por dentro sentia como se houvesse uma bolsa de lágrimas dentro de mim prestes a estourar e transbordar. Nem sei por onde, nem chorar eu conseguia. “Você precisa ir embora Katye, você precisa...”, gritava meu subconsciente.
Minha bagagem já estava pronta e foi arrumada na mesma rapidez em que me mudei. No fundo de uma das caixas, um porta-retratos com uma foto da nossa última comemoração de dia de ação de graças me fazia ficar pior do que eu estava. Olhava meu reflexo cortado no fundo da caixa, o espelho de bordas vermelhas, com uma rachadura vertical, agora transmitia um sentimento ruim, um sentimento de arrependimento, de decepção. Eu estava destruída, por dentro e por fora. Ainda não acredito que ele foi capaz de fazer aquilo. Apesar de tudo, eu ainda o amava, mas precisava me refazer e recomeçar.
Nos últimos meses se tornou impossível a convivência a dois com Adrian. A cada dia uma nova briga, e mal tínhamos tempo para uma conversa, e quando tínhamos, ele me queria para outras coisas que passava longe de ser uma conversa. Tudo o que eu desejava era um singelo “como foi o seu dia?”. Eu me sentia usada e sempre como segunda opção. Não era recíproco. Não mais. Muita coisa havia mudado, inclusive os sentimentos, e cheguei a desconfiar que Adrian me traia. Eu não sei como chegou aquele ponto. Toda aquela paixão, aquele êxtase de quando estávamos nos conhecendo foi simplesmente esfriando. Eu não sabia o que estava acontecendo, não sabia quem era o problema. Adrian chegava do trabalho, me desejava “boa noite”, pedia para que eu servisse seu jantar e logo em seguida se deitava e dormia.
Quando eu ia deitar, olhava para aquele homem, o meu homem, e sentia um desejo enorme de tê-lo, não por apenas cinco minutos de prazer, eu o queria por pelo menos umas cinco horas para ele me dizer como foi no trabalho e me deixar massagear suas costas exaustas de um dia cheio. Eu queria fazer mais por nós e tentei, também precisava que Adrian tentasse, mas a parede que nos bloqueia hoje e que talvez nunca se desmorone é maior que tudo. E aqui estou eu, terminando de pôr no carro, na garagem do apartamento, a última caixa de mudança. Thelye iria me receber em sua casa, eu esperava. Eu iria ver Leo, meu sobrinho, um garoto extremamente gentil, educado e alegre que sempre arrancava um sorriso meu, não importasse o quão para baixo eu estivesse. Iria chegar lá sem aviso prévio. Mas ela é minha irmã e melhor amiga, iria entender minha situação. Já nos apoiamos tantas vezes, fomos o pilar uma da outra. Era o que eu queria dela naquele momento. Queria um ombro amigo, um chocolate quente, um conselho. Thel sempre me colocava pra cima, me incentivava a seguir em frente, a aprender com os erros. Éramos carne e unha. Certa vez, quando eu havia sido demitida do meu emprego e meu namorado terminado comigo (no mesmo santo dia), desabei. Mas não pelo emprego, mas por ele ter tido a coragem, a falta de empatia, em ter terminado comigo de forma tão fria e cruel. Eu havia chegado em casa correndo, fui direito para meu quarto e me tranquei.
– Katye, está tudo bem? – Thelye gritou me seguindo. – Posso entrar? – Abriu a porta e arregalou os olhos ao me ver naquele estado.
– Quando isso vai acabar? Quando poderei ser feliz sem ser magoada? Nada para mim dá certo, eu fui demitida! – Desabei.
– Ah, minha irmã, algumas vezes a vida é assim. – Abraçou-me.
– Algumas vezes? Há algo de errado comigo então, porque é sempre. – As lagrimas não sessavam um segundo.
– Kat, meu bem, nem sempre as coisas acontecem da forma como planejamos. Tem vezes que precisamos primeiro perder para depois ganhar. – Me levantou e tentou arrumar meu cabelo – Que tal sairmos para dar uma volta?
– Totalmente sem clima, Thel. – Resmunguei e escondi a cara com o travesseiro.
– Agora você precisa se permitir viver, ou você passará o resto da vida presa em aflições do passado. A vida é hoje, é agora. – Ela disse. E quando pensei que não, Thelye já havia escolhido uma roupa e feito uma leve maquiagem em meu rosto inchado de tanto chorar.
– Satisfeita? – Sorri bobo.
– Essas botas te deixaram bem caliente. – Ela deu uma gargalhada, que me contagiou.
– E esse moletom preto me deixou igual a um pinguim. – Revirei os olhos, sorrindo.
– Sua louca, está ótima! – Me puxou e saímos Chicago á fora.
– Quando isso vai acabar? Quando poderei ser feliz sem ser magoada? Nada para mim dá certo, eu fui demitida! – Desabei.
– Ah, minha irmã, algumas vezes a vida é assim. – Abraçou-me.
– Algumas vezes? Há algo de errado comigo então, porque é sempre. – As lagrimas não sessavam um segundo.
– Kat, meu bem, nem sempre as coisas acontecem da forma como planejamos. Tem vezes que precisamos primeiro perder para depois ganhar. – Me levantou e tentou arrumar meu cabelo – Que tal sairmos para dar uma volta?
– Totalmente sem clima, Thel. – Resmunguei e escondi a cara com o travesseiro.
– Agora você precisa se permitir viver, ou você passará o resto da vida presa em aflições do passado. A vida é hoje, é agora. – Ela disse. E quando pensei que não, Thelye já havia escolhido uma roupa e feito uma leve maquiagem em meu rosto inchado de tanto chorar.
– Satisfeita? – Sorri bobo.
– Essas botas te deixaram bem caliente. – Ela deu uma gargalhada, que me contagiou.
– E esse moletom preto me deixou igual a um pinguim. – Revirei os olhos, sorrindo.
– Sua louca, está ótima! – Me puxou e saímos Chicago á fora.
Estávamos no carro. A rua, as casas e os carros estavam cobertos de neve.
– Aonde vamos? – perguntei.
– Esquecer todos esses problemas. – Ela fechou o cinto dela, eu fechei o meu. Então, ela pisou no acelerador.
– Aonde vamos? – perguntei.
– Esquecer todos esses problemas. – Ela fechou o cinto dela, eu fechei o meu. Então, ela pisou no acelerador.
Eu esperava do fundo do coração que desse certo.
Agora, a neve não estava como naquele dia. Acontecia uma tempestade incessante, brutal, maligna. A nevasca zumbia lá fora, e eu me sentia insegura de sair. Havia um sentimento estranho, lá no fundo. Mas sempre que eu pensava em voltar para aquele apartamento, ver as coisas dele, sentir o cheiro das roupas dele... Eu tinha certeza absoluta de que preferiria enfrentar a nevasca.
Liguei o carro e comecei a dirigir até a saída. Um vendaval de neve me aguardava no horizonte. Eu estava com medo. Liguei o som do carro e aumentei no volume máximo. A música talvez se sobreponha sobre o barulho da tempestade. O porteiro veio na direção do meu carro, batendo em minha janela com muita força e desespero, proferia algumas palavras que não pude decifrar. Eu não queria saber. Eu queria sair dali agora e para sempre.
Como as coisas estão?
Uma luz branca me recebeu quando abri meu campo de visão.
Os sons eram percebidos gradualmente. Alguém soltou um som de surpresa, depois, ouvi passos rápidos, alguém havia corrido.
Algo está estranho.
Sinto alguma coisa em minhas narinas, uma obstrução. Mais passos apressados, muitos passos apressados. Começaram a dialogar, eu não conseguia distinguir. A luz branca agora havia se tornado uma lâmpada, num teto que também era branco. O cheiro me lembrava limpeza.
– Isso... é impossível. – uma mulher falou, surpresa. Parecia estar ao meu lado.
Virei a cabeça, e avistei ao menos cinco pessoas, de jaleco branco, me olhando, próximo de mim. Eu estava deitada. Tentei, com um impulso, me levantar, mas nada aconteceu. Como assim? Tentei novamente.
Nada.
O que está acontecendo?, tentei falar. Um tom indistinguível saiu de minha boca. Um homem de jaleco se aproximou de mim, ergueu algum objeto sobre meus olhos e uma luz branca cegou minha visão de um olho.
– Tudo bem... – ele disse, desligando a luz e me olhando nos olhos.
– O quê... – consegui dizer.
– Katye, consegue me entender? – ele perguntou.
– Sim...
Vi que sua mão pousou sobre meu ombro.
– Katye, você acaba de acordar de um coma.
Não. Isso era impossível. Eu estava saindo do apartamento há pouco tempo. Não tinha como isso acontecer. Nada aconteceu comigo... Eu estava dirigindo, com o som alto, na estrada, a caminho da casa de Thelye, não estava?
– Não... Eu... Estava dirigindo...
– Não, Katye... – ele fez uma longa pausa e se afastou. – Eu sinto muito.
Ele se virou para os outros e perguntou:
– Onde ela está?
– Está a caminho, mas não sabe se vai querer entrar.
– É muito importante ela vir. Os dois, na verdade. Isso vai ajudar ela a se recordar de lembranças caso tenha havido perdas.
– Há quanto... – tentava falar, mas minha garganta doía, não se articulava direito, como se eu tivesse desaprendido. – Quanto tempo?
Ninguém me respondeu. Todos de jaleco branco de retiraram do quarto, com exceção do médico que estava ao meu lado. Ele se inclinou sobre mim e disse:
– Vinte e cinco, Katye. Você estava dormindo há vinte e cinco anos.
As coisas estão assim agora
A cama estava inclinada de certa forma em que eu estava sentada, encostada. Havia tubos em minhas narinas e eu estava recebendo medicamentos pelas veias, tubos e mais tubos. Minhas mãos estavam enrugadas e a pele parecia flácida e pálida. O quarto em que eu estava era branco, claro e limpo. Não havia nenhuma flor. Talvez isso fosse apenas coisa de filme. Minhas penas estavam dispostas lado a lado, mortas. Eu não conseguia movê-las, assim como minhas mãos. Havia momentos em que eu me esquecia, e tentava mudar de posição ou alcançar um objeto na mesa ao lado e nada acontecia. Quando me tocava de que estava sem movimentos, sentia uma angústia profunda. O tipo de angústia que se sentia com um aperto forte no coração, mas que eu não conseguia mais sentir. Eu estava morta.
Mas a pergunta que não calava em minha cabeça era “O que mudou em vinte e cinco anos?”.
A porta se abriu, virei meu rosto para olhar quem entrava. Era o médico. Eu ainda não sabia seu nome. Ele tinha a cor da pele acobreada, e parecia limpa, macia e suave.
– Olá, Katye. – Ele disse, entrando e fechando a porta. – Você está bem? Como tá se sentindo?
– Bem... Eu estou bem, eu acho.
Ele estava se aproximando. Parecia cauteloso.
– Ótimo, isso é muito bom. Você tem visita, ou melhor dizendo, visitas.
Inclinei a cabeça para o lado, em dúvida.
– Quem ainda lembra de mim em vinte e cinco anos? Eu perdi metade da minha vida. Sou só um empecilho. Por que não me... – o choro engoliu minhas palavras, fechei os olhos. Tentei cobrir o rosto com as mãos, encobrir minha vergonha, encobrir meus sentimentos e emoções. Mas continuei exposta, as lágrimas escorrendo, molhando meu rosto.
Senti algo encostar ao lado de minha cabeça. Quando abri os olhos, ainda chorando, me forçando a parar, ele estava abraçado em mim, sentado de forma desconfortável ao meu lado na cama. Acariciava meu braço, apertava minha mão, como se eu sentisse algo.
– Katye, Katye... Calma... Relaxa... Vai ficar tudo bem, ok? Eu estou aqui. Você é uma sobrevivente. Se estivéssemos deixado você ir, você não estaria aqui, agora, acordada. Você nasceu de novo, Katye... Você nasceu de novo.
A porta se abriu. Olhei rapidamente. O médico se levantou imediatamente e ficou em postura ereta e elegante novamente. Uma mulher adentrou a sala, hesitante. Estava perplexa, com os olhos fixos em mim.
– Ai meu Deus... – a ouvi sussurrar.
Ela deu um passo a frente. Era ela. Sim, claro, era ela! Ah meu Deus!
– Thel? – perguntei, eufórica.
– Kat?! – ela se aproximava a passos hesitantes e cuidadosos. – É você mesmo? Você? – Chegou ao meu lado, de braços abertos, e me abraçou. – Você está acordada? Kat, você está acordada.
Não consegui abraçá-la de volta, mas respirar seu cheiro e poder senti-la em meu rosto foi gratificante. Thel cheirava a roupas com amaciante e sabonete. Vivia cheirosa.
Ela me largou, e o que vi em seu rosto me deixou assustada. Ela ainda me olhava com medo, como se estivesse visto um fantasma.
– O que foi? – perguntei.
Ela não respondeu de imediato. Se sentou na poltrona. O médico se retirou.
– Nada. Não é nada. Por que?
– Nada... Não sei... Você... Está bem velha. – sorri, e ela sorriu de volta.
– É claro que estou, Kat. – Ela respondeu, sorrindo. – Ainda não descobri a fonte da juventude.
– Por que o Leo não veio? – perguntei.
– Ah... Ele veio. Só está um pouco ocupado.
– Como assim?
Ela parecia procurar pelas palavras certas.
– Está com o Adam. Meu filho. É um bebê.
Abri um largo sorriso, tomada de uma imensa alegria.
– Thel, você teve mais um filho? Ah meu Deus, que incrível! Quando? Quem é o pai?
– Ah... Ele nasceu há pouco tempo. O pai... bem, também está lá em baixo.
– Por que não traz eles aqui? Leo deve estar grande. Quero ver ele!
– Eu vou... – ela abaixou a cabeça, confusa. – Mas... Acho que... – Ela levantou a cabeça, com uma expressão séria. – Você precisa saber que... – Suspirou. – Kat, promete que não vai me julgar?
Franzi o cenho e ergui a sobrancelha.
– Julgar? Thel, me conhece! Sabe que vou te amar sempre, independente das suas decisões. Vou sempre te apoiar. Você é minha irmã e minha melhor amiga!
Ela forçou um sorriso que durou um segundo e levantou da poltrona, se apoiando nos braços, deu meia volta e saiu do quarto.
Não sei quanto tempo fiquei esperando. Uma faxineira recolheu o prato e os talheres descartáveis do meu café e ligou a televisão. O que ela estava fazendo? Por que estava demorando tanto? Havia ido embora? Para sempre? Me abandonou?
A porta abriu novamente. Era ela. E algumas pessoas atrás de si.
– Eu não posso... – um homem resmungou atrás dela.
– Ela precisa saber! – um garoto com um bebê no colo retrucou.
– Thel? Leo? – perguntei, curiosa. Estavam todos na porta ainda, hesitantes e nervosos.
– Tia Kat... – a voz dele estava grossa. Era mesmo o Leo?
– Leo?... Leo...
Ele caminhou rápido até mim e me abraçou. Acho que me abraçou muito forte. Ele estava maior, musculoso e com a feição magra e robusta.
– Nunca esquecemos de você. – ele disse. Eu sorri vendo ele. Estava tão grande e formado... Quanto tempo havia se passado? Quem ele era agora? Não era mais o mesmo garotinho de antes. As lágrimas retornaram, e mais uma vez tentei enxugá-las. Sem sucesso. Ele saiu do meu campo de visão. Thel segurava o bebê agora, e ele estava ao seu lado.
– Kat... – disse Adrian, dando alguns passos a frente. Ele estava mais encorpado, a pele que antes era limpa agora estava coberta de pêlos, seca e enrugada. Ele estava mais maduro. Estava envelhecendo. As três linhas na testa eram como depressões.
– Adrian... Oi... – Eu queria abraçá-lo. – O que?... O que faz aqui?
Adrian olhou para Thel, preocupado. Juntos, os dois se aproximaram. Thel carregava o grande e gordo bebê com dificuldade.
– Kat... – ela disse. – Você prometeu...
– Eu.... O quê?....
Thel estava vermelha e começou a chorar. Olhei para Adrian, parecia angustiado, parecia estar segurando um choro ou um grito. Os punhos estavam cerrados e suas veias saltavam da pele. Um flash, um pequeno flash, uma pequena lembrança: os punhos de Adrian cerrados, o rosto enfurecido. Queda.
– Kat... – disse Thel, chorando. – Eu e Adrian estamos juntos...
Eu olhava os dois. Parados, imóveis, chorando. Vinte e cinco anos me custaram isso? Eu era apenas um obstáculo entre eles esse tempo todo? Mais uma vez, meus olhos ficaram úmidos repentinamente e então eu os fechei com força.
– Eu sinto muito, Kat... – Thel choramingava. Ouvia o som dos passos dela se aproximarem. – Me perdoa.
Abri os olhos, ela estava ao meu lado, com o bebê, com as mãos em meu braço. Queria mais que tudo que ela tirasse as mãos dela de cima de mim. Sentia repulsa, nojo.
– Tira as suas mãos de mim, Thel... – Eu choraminguei em tom ameaçador. – Tira...
Ela tirou. Olhei para Adrian, que parecia estar prestes a explodir com alguma emoção bem escondida dentro dele.
– Há quanto tempo? – perguntei, olhando para ele.
Ele demorou a responder, sem tirar os olhos de mim.
– Vinte anos, mais ou menos.
Virei o rosto, olhando para a parede, balançando a cabeça negativamente.
– Não puderam esperar, não é?.... – Olhei para eles novamente. – Eu sempre fui uma pedra no sapato, não é?
– Não... – Thel disse, negando com a cabeça, chorosa. – Não, Kat... Tudo aconteceu depois que você... depois que você dormiu. Estávamos muito envolvidos com a sua situação e passávamos muito tempo juntos... Kat.... Eu sinto muito. – Implorou na última frase.
Olhei para o bebê. Senti uma certa raiva, um pouco de ódio em relação a ele. Mas repudiei esse sentimento. Era uma criança, e ela não tinha culpa de nada.
– Adam, não é?... Tão semelhante... Quem escolheu?
– Eu. – Adrian respondeu. – Eu escolhi.
Tentei sorrir, mas o sorriso de desfez contra minha vontade. Fiquei balançando a cabeça. Leo caminhou até a janela e abriu as cortinas. Inverno. Azul. Neve. Tempestade. Era o que eu estava tentando evitar dentro de mim agora.
Não vi quando eles foram embora, pois fiquei admirando a paisagem janela afora. O médico entrou pela porta, carregando uma caixa de papelão.
– Boa tarde, Kat... Você está bem?
Não o respondi com palavras. Olhei em seus olhos.
– O que trouxe aí? – perguntei.
– Eu trouxe lembranças.
Colocou a caixa ao meu lado. Estava fechada.
– Por que me trouxe lembranças? – perguntei.
– Faz parte do seu tratamento. Você pode ter perdido memórias. Não se lembra de ter sofrido o acidente, não é?
Neguei com a cabeça, olhando a caixa.
– Certo. – ele disse. – Sua irmã, o filho dela e o... Adrian, selecionaram alguns objetos seus que eles acreditam ser de valor sentimental. Não é muita coisa, mas podem te ajudar a lembrar de algo, ou não. Não custa tentar. Quer que eu abra a caixa pra você?
Olhei para ele e confirmei com a cabeça. Ele abriu a caixa.
Um volante. Gelo. Neve. Medo.
Um dispositivo retangular. Surpresa. Tristeza. Medo.
O espelho de borda vermelha. Amor. Paixão. Medo. Sangue.
Uma aliança. Espelho. Casamento. Felicidade.
Cada um daqueles objetos me recordou algo que estava escondido. Olhei para o volante, que ocupada maior parte da caixa. A pista está lisa, derrapante. Tudo a minha frente está azul, caótico, mortal. Eu perco o controle, tento retomar. Eu falho. Algo de ruim vai acontecer. Apago. Sem mais lembranças.
Olho o dispositivo retangular. O teste de gravidez. Quero mostrar para Adrian, mas ele não me ouve, está brigando comigo por algo que deixei de fazer. Eu estou grávida, quero contar para ele, mas ele acabou com o clima. Vou mesmo querer ter o seu bebê?
O espelho. Estou naquele dia no escritório. Feliz e apaixonada. Estava autoconfiante, bonita, empoderada. Mas o que eu via agora era o contrário disso. As marcas da velhice deixaram em mim um rosto caído e partido, uma expressão triste e cansada. Derrotada. No lugar dos lábios carnudos e do batom vermelho haviam lábios finos, rachados e pálidos. No lugar do brilho nos olhos, um vazio, um nada, a esperança estava ausente.
A aliança. Adrian segurava um porta aliança em mãos, que abre e revela duas alianças. Aquele dia em que ele me pediu em casamento na frente de todos no trabalho.
Mas... O espelho... está rachado, está quebrado. Eu queria dar uma grande notícia para ele, mas ele não queria me escutar. Cerrou os punhos e veio em minha direção. Estou no chão, atônita. Abro os olhos, vejo meu reflexo no espelho quebrado ao meu lado. Uma gota de sague sobre ele. Adrian me colocou para o chão. Quebrou nosso espelho. Fiquei magoada. Extremamente magoada. Guardei minhas coisas na caixa, segui para o estacionamento, liguei o carro e saí para a nevasca... E agora estou aqui.
Viro os olhos de volta para a neve através da janela. Os prédios cobertos por um branco que está por toda parte, vagando, gélido. O inverno. No inverno não há folhas, nem paisagens, nem árvores expondo o belo verde de suas copas. No inverno há apenas neve por toda a parte. Cobrindo casas, carros, ruas e pessoas. Essa neve me cobriu de tal forma que penetrou em meu coração até minha alma. Eu nem me reconheço mais. A frieza me domina, me envolve e me sufoca. Raramente alguém sai imune de alguma decepção, porém, há vezes que você precisa arrancar o band-aid e deixar arder. Sim, eu sei que dói, mas não mata, sei também que arde, mas cicatriza, e ouvi dizer que o melhor remédio é o tempo. A vida te faz engolir o comprimido sem nenhum pingo de água. Você aprende com as experiências, você amadurece. Dói, mas não existe arco-íris sem a chuva assim como não existe o verão sem a passagem do inverno.
_______________________________________________________
_______________________________________________________

Quer ter seu conto exibido no Web Mundi também? Não perca tempo! Envie um email para blogwebmundi@gmail.com com a sinopse e o seu conto! Não perca essa chance!


0 Comentários